FREQUÊNCIA 0.0
Eu não acredito que estou escrevendo isso...Mas, é algo que você precisa saber.
E, principalmente, porque talvez essa seja minha última chance de contar.
Meu nome não importa agora. Tudo começou quando meu amigo Rafael apareceu com um carro novo.
E não era qualquer carro.
Era caro. Muito acima do que ele podia pagar. A gente estudou junto, dividia miojo e conta de luz.
E agora ele estava bancando vinho caro e restaurantes luxuosos como se fosse coisa da rotina..
Mas eu não acreditei. E continuei insistindo.
Dias depois, depois de algumas cervejas e promessas de sigilo absoluto, ele me contou:
Eu ri na hora. Uma rádio secreta?
Mas ele ficou sério. Quase assustado.
E aí ele me entregou um papel com as instruções escritas à mão:
"Regras da Frequência 0.0"
Sintonize apenas às 14h ou 2h da manhã.
Não conte a ninguém sobre a frequência.
Se eles ligarem, atenda. Eles não gostam de esperar.
Nunca desligue o programa antes de terminar.
Nunca minta no jogo das perguntas. Eles sabem.
Eu não estava em posição de dizer não. Meu pai estava mal. Os remédios eram caros.
E eu me culpava por isso.
Ele ficou doente depois do acidente. Um acidente que só aconteceu porque ele foi me buscar, ele acabou batendo o carro. Eu tinha bebido. Não devia ter saído aquela noite.
Mas ele foi. E está sofrendo por minha causa.
Então no dia seguinte, esperei até às 14h. Coloquei um fone antigo, girei o botão para sintonizar até quase quebrar.
Entre duas rádios, só ouvia o chiado.
Mais chiado.
Ajustei o botão...
E aí, ele surgiu.
A voz era carismática demais, pertencia a Davi. Um locutor eloquente, animado, mas com uma risada que tinha alguma coisa errada, não sei explicar o que era..
Ele começou a tocar músicas que eu nunca ouvi na vida. Eram bandas com nomes esquisitos. E também haviam notícias e fofocas sobre pessoas e lugares que nunca ouvi falar.
E então ele começou a interagir com os ouvintes.
Chamava pessoas pelo nome, cidade... perguntava coisas que ninguém teria como saber.
E o mais estranho: as ligações vinham da rádio para a casa das pessoas.
Em um dos quadros, ele dizia:
Naquele dia, não fui chamado.
Mas a experiência me marcou, eu precisava continuar ouvindo.
E a cada nova transmissão eu voltava. 14h, pontualmente.
Como era o programa da madrugada? Eu precisava saber. Então a curiosidade me venceu.
Esperei dar 2h.
Sintonizei de novo.
Mas dessa vez… era outro programa.
Outra voz.
A locutora tinha uma voz doce, suave... Mas algo nela era horrível.
Cada palavra era arrastada, como se ela quisesse saborear sua audição.
E diferente do locutor da tarde, ela não era carismática.
Ela era ameaçadora.
Durante o programa, ouvi uma ligação ao vivo.
Um cara atendeu. Parecia desconfiado.
Silêncio.
A contagem seguia enquanto o homem na linha xingava Lilith
O som mudou. Gritos. Tiros.
Depois silêncio.
E a voz dela:
Eu desliguei o rádio.
Mas era tarde.
O telefone da minha casa tocou.
Olhei o número desconhecido, lembrei das regras. Então eu atendi.
Meu coração congelou. Mas eu sabia... não atender era pior.
A pergunta me travou.
Meu pai estava muito mal. Pálido, febril, sem forças.
Tudo apontava pra ele.
A culpa me esmagava.
Só isso.
Frio. Cruel. Definitivo.
Senti meu corpo gelar.
Meu pai.
Eu já o tinha condenado antes.
Rafael só me apresentou isso tudo por minha insistência.
E eu... bem, talvez fosse hora de acertar as contas com tudo.
Silêncio.
A risada.
Aquele som úmido de língua nos dentes.
A ligação caiu.
Na manhã seguinte, Rafael foi encontrado morto em casa.
Morreu enquanto dormia.
E eu...
Desde então, sei que minha vez está chegando.
Eu escolhi.
E agora só resta aceitar.
...Ou quase.
Há uma última regra no papel que Rafael me deu. Esqueci de te falar sobre ela...
"Se quiser sair do jogo das perguntas, traga um novo Ouvinte…"
Não espero que me entenda, mas agora que sabe sobre a frequência 0.0, pode ser que eles entrem em contato com você.
Lembre-se das regras.
Quanto a mim? Agora que você sabe, eu...
Eu tô livre.
Lembre-se de atender a ligação nas próximas horas.
Eles não gostam de esperar.
Boa sorte, Ouvinte.
