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quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Fingindo ser ela

Os pais da Helena nunca a deixavam sozinha. Nunca. Eram o tipo de gente que ligava a cada meia hora quando ela saía com as amigas, e se eu demorasse dez minutos além do previsto para deixá-la em casa, o telefone tocava como se fosse uma emergência. Então, quando ela me disse que eles tinham viajado e que ficaria sozinha por alguns dias, algo em mim travou. Ela já havia me falado sobre a viagem, mas nunca pensei na possibilidade de ficar sozinho com ela em sua casa.

"Vem me fazer companhia"

ela disse pelo celular, e a voz parecia a mesma. Doce, casual. Mas não soava como Helena. Não inteiramente... No primeiro dia, achei que era impressão minha. Talvez cansaço. Mas havia detalhes… pequenas coisas que me cutucavam como espinhos invisíveis. Ela sorria diferente. Os cantos da boca subiam rápido demais, como se o rosto não tivesse sido feito para aquele gesto. Às vezes a voz oscilava, mais grave, um timbre que nunca ouvi nela. E o pior era quando me chamava de "amor". Não havia carinho na palavra, só uma repetição mecânica, como quem está praticando a falar algo pela primeira vez. No começo pensei que era frieza, que ela não me amava mais. Essa ideia me corroía. 

Mas a cada hora que passava, a explicação de que era apenas "desamor" parecia mais frágil. A gata dela, a Mimi, sempre foi grudada em Helena. Dormia no colo, ronronava só de ouvir a voz dela. Agora, quando Helena entrava no quarto, Mimi se arrepiava inteira, recuava para baixo da cama e soltava aquele miado baixo, aflito. 

Helena fingia não notar, apenas forçava aquele sorriso errado. Eu comecei a fingir também. Fingir que acreditava. Ria das piadas dela, abraçava quando me pedia, deixava os lábios encostarem nos dela mesmo sabendo que o beijo não era igual, tinha um gosto estranho, metálico. Por dentro, eu só observava. Testava. Guardava os erros dela. 

No terceiro dia, a máscara quase caiu. Perguntei sobre nossa primeira viagem juntos, para a praia. Ela respondeu com convicção, mas trocou o nome da cidade. Helena nunca erraria isso. Nunca. Quando a corrigi, ela piscou rápido e riu, tentando disfarçar. Mas eu vi nos olhos: não era esquecimento. Era improviso. 

Naquela noite, não aguentei mais. Sentei no sofá, com Mimi escondida atrás de mim, e encarei aquela coisa que usava o rosto da minha namorada. 

 "Quem é você?"
minha voz tremia. 

 "O que você fez com a Helena?" 

Ela congelou. O sorriso se desfez. Por alguns segundos, o silêncio foi absoluto, pesado, como se a casa prendesse a respiração. Então ela inclinou a cabeça e falou, e a voz… a voz não era dela. Era grossa, irregular, como se ecoasse de dentro de um poço. 

"Você percebeu… não é?" 
 Ela sorriu, mas o rosto se retorceu. 

 "Você sabe que eu não sou ela." 

 A pele começou a ceder, descascando. O pescoço se alongou de repente, os olhos escorreram em uma forma de líquido. O corpo inteiro se retorcia, ossos estalando. A boca se abriu larga demais, os dentes irregulares, podres, surgindo num arco deformado.

Eu gritei. Ela avançou sobre mim, a forma de Helena despencando em pedaços. Um ser apodrecido, humanoide, deformado, fedia como carne deixada ao sol. Avançou com um estalo seco, braços compridos, dedos afiados. Eu corri, tropeçando pela casa, Mimi disparando junto.

Atrás de mim, o som dela... ossos quebrando, carne se arrastando, como se o corpo lutasse para se mover, aquilo estava tentando assumir uma nova forma, não esperei para ver. Consegui escapar. Bati a porta atrás de mim e corri até minhas pernas perderem as forças. 

Quando me virei, a rua estava vazia. Helena não estava mais lá. A coisa sumiu. No dia seguinte, não tive notícias dela. Nem mensagens, nem ligações.

Até que, na televisão, vi a notícia: um carro encontrado na ribanceira, destruído. Dentro dele, os pais da Helena... E Helena. Todos mortos no acidente. O mundo girou. A garganta secou. Ela estava morta desde o início. Morta. Então o que, em nome de Deus, esteve comigo todos aqueles dias? Desde então, não consigo dormir em paz. Cada ruído no escuro me faz gelar, cada sombra parece observadora. 

Porque eu sei que ela... não, aquilo, ainda está por aí. Em algum lugar, existe algo fingindo ser alguém.



terça-feira, 29 de outubro de 2024

O aroma da morte


Eu me lembro do perfume da minha irmã. Era doce e suave, como uma manhã de primavera. Ela sempre parecia carregar um pouco de paz com ela, como se aquele cheiro de morangos frescos e algo doce que eu nunca consegui identificar tivesse o poder de afastar qualquer coisa ruim. Quando eu estava ao lado dela, me sentia seguro, como se nada pudesse me machucar.


Mas isso foi antes do acidente.


Eu tinha seis anos. Estávamos no banco de trás do carro, meus pais na frente, minha irmã ao meu lado. Ela estava cochilando, e eu sentia aquele cheiro familiar e tranquilizador. Foi aí que, do nada, um aroma estranho surgiu. Era algo que eu nunca tinha sentido antes – amargo, como metal enferrujado, e ao mesmo tempo, azedo. Eu me lembro de franzir o nariz, de tentar entender o que era aquele cheiro e de me virar para perguntar aos meus pais… mas não deu tempo.


O barulho do impacto foi a última coisa que ouvi. Depois, houve apenas o silêncio e aquele cheiro horrível, que pareceu impregnar tudo ao meu redor. Minha irmã não sobreviveu. E eu saí do hospital com uma sequela na perna, que mesmo depois de todos esses anos ainda me faz mancar. Mas o que ficou impregnado em mim foi o medo: aquele cheiro estranho que surgiu no exato momento em que tudo deu errado.


Com o tempo, comecei a notar que sempre que alguma coisa estava prestes a dar errado, algo como aquele cheiro voltava. Era um presságio silencioso, um aviso. Eu costumava sentir o cheiro ruim quando estava próximo de pessoas que estavam muito doentes, era normal sentir esse cheiro em hospitais, por isso sempre evito esses lugares, porque sei que quando sinto esse cheiro a morte está por perto. 

Meus pais achavam que era trauma, que eu estava imaginando coisas. Mas eu sabia que não era só imaginação. Eu sentia o cheiro. E, sempre que o sentia, algo ruim acontecia.


Eu aprendi a confiar no meu olfato. Como naquela vez, no ensino médio, quando meus amigos me convidaram para uma festa. Eu estava pronto para ir, mas, de repente, senti aquele cheiro amargo e metálico de novo, como se o perigo estivesse bem ali, espreitando. Desisti de sair. Na manhã seguinte, descobri que a festa foi invadida por assaltantes. Um dos meus amigos foi baleado. Foi assim que percebi que meu olfato de alguma forma era um aviso.


Os anos passaram, e eu fui me isolando cada vez mais. Estar perto de muitas pessoas me deixava nervoso, sempre atento a qualquer sinal, a qualquer aroma que pudesse indicar perigo. Então, um dia, tudo mudou. Eu conheci alguém, a Clara.


O cheiro dela era tão doce que trazia uma calma profunda, me lembrava do cheiro da minha irmã. Era como se eu estivesse protegido de tudo ao lado dela, como se o mundo ficasse mudo e seguro. E pela primeira vez em muito tempo, eu me senti em paz 


Sempre que eu estava ao lado dela, o mundo parecia melhor, como se nada pudesse me machucar. Logo me apaixonei perdidamente.


Até o dia em que tudo mudou.


Estávamos em um trem fazendo uma viagem escolar para uma pequena cidade fora da capital. Eu não gostava de lugares lotados, mas Clara me convenceu de que seria uma viagem divertida. O vagão estava cheio, e nós nos sentamos juntos, rindo de qualquer coisa, aproveitando o momento. Mas, no meio da conversa, senti um cheiro.


Era fraco no início, como uma nota azeda se misturando ao perfume dela. Pensei que fosse algum tipo de problema no vagão, talvez algo na cozinha do trem. Mas então o cheiro ficou mais forte, mais intenso, um misto de metal enferrujado e carne queimada, algo que prendia minha respiração, que me fazia lembrar do acidente, daquele dia no carro. 


Olhei ao redor, mas ninguém parecia notar. Todos estavam tranquilos, conversando, olhando pela janela. Mas, para mim, era como se aquele cheiro estivesse explodindo, preenchendo cada espaço do vagão. Era o cheiro mais intenso que eu já havia sentido, como se o próprio ar tivesse apodrecido.


Me virei para ela, e o sorriso ainda estava em seu rosto, mas eu mal conseguia olhar para ela com aquele cheiro. Sussurrei que talvez devêssemos descer na próxima estação, que algo estava errado, mas ela apenas riu e segurou minha mão, como se quisesse me acalmar. Mas o cheiro... o cheiro era tão forte que tudo ao meu redor começou a girar, a escurecer


Enquanto conversávamos, um homem entrou no vagão. Ele era alto, e o sorriso que ele tinha no rosto era desconcertante. O cheiro horrível começou a se intensificar, um fedor que invadia minhas narinas e me fazia querer vomitar. Aquele sorriso... ele parecia estar feliz, mas aquele olhar doentio indicava que algo não estava certo. Olhei para Clara tentando encontrar conforto, mas até doce perfume dela não conseguia esconder aquele cheiro. 


O cheiro que emanava das outras pessoas ao nosso redor começou a mudar, tornando-se semelhante ao do homem. O ar estava cheio de tensão e desespero, e o doce aroma de Clara foi rapidamente sufocado pelo cheiro nauseante que se espalhava pelo vagão.


Aquilo ficou tão intenso que meus olhos lacrimejavam, e eu comecei a sufocar, sem conseguir respirar. 


O coração começou a disparar em meu peito. O homem sorriu. E foi nesse momento que o odor alcançou seu auge. Ele puxou uma arma do bolso da blusa, e eu percebi que a paz que sentia ao lado de Clara estava prestes a ser destruída.


Me dei conta de que não havia escapatória, que aquele cheiro de morte era absoluto. A sensação me atingiu com tanta clareza que a aceitação era inevitável.


Naquele instante, não havia dúvida: a morte já estava conosco.




sexta-feira, 18 de outubro de 2024

As fadas

Minha avó costumava dizer que o medo verdadeiro não vinha de criaturas grotescas que saltam das sombras. O medo verdadeiro era sutil, paciente. Ele sussurra para você, criando raízes no coração até que, quando você se dá conta, ele já tomou conta de tudo. É nesse momento que você percebe que não há escapatória.

Quando eu era pequena, ela me contava histórias sobre fadas, mas não aquelas criaturas fofas que apareciam em livros infantis. Não, as fadas da minha avó eram predadoras, seres antigos e impiedosos que viviam entre nós, escondidos à vista de todos. Elas não eram reconhecíveis à primeira vista. "Você só as verá quando for tarde demais," dizia minha avó. "É o brilho nos olhos... um brilho que não pertence a este mundo. E quando você ver isso acontecer, vai entender...A morte não é o fim, é o portal."


Naquela época, essas palavras me assustavam, mas eram apenas histórias, ou pelo menos foi o que eu escolhi acreditar. No entanto, com o passar dos anos, essas histórias começaram a tomar vida própria. Pequenas coisas começaram a acontecer. Animais desapareciam, o ar parecia mais pesado, e as noites pareciam ter se tornado mais longas. Mas eu continuei ignorando os sinais.

Até que os corpos começaram a aparecer.

As notícias explodiram em todos os lugares. Pessoas ao redor do mundo, de diferentes países, começavam a ser encontradas mortas em circunstâncias estranhas. Não havia sinais de violência física. O que deixava tudo mais perturbador eram os olhos das vítimas. Todos os relatos, de diferentes partes do planeta, concordavam com a mesma descrição: olhos que brilham.

Os noticiários não sabiam como explicar. Teorias de um vírus, um surto psicótico coletivo ou até mesmo uma contaminação química começaram a circular. Manchetes gritavam o terror em letras vermelhas, como se o mundo estivesse sendo invadido por algo invisível, algo que ninguém conseguia nomear.

"Olhos brilhantes, mortes inexplicáveis se espalham pelo mundo" "Contaminação Global? Cientistas em pânico sobre os recentes eventos"

Mas eu sabia. As palavras da minha avó ressoavam mais fortes do que nunca: "A morte não é o fim, é o portal."

Foi numa tarde ensolarada que algo mudou para sempre. Eu estava passeando com Lucky, meu cachorro, como fazia todos os dias, quando ele parou subitamente, o pelo se arrepiou, as orelhas em pé. Seus olhos fixos em um ponto à frente, em um beco escuro. Segui seu olhar e, por uma fração de segundo, vi. Dois olhos brilhando na escuridão. Humanos, mas ao mesmo tempo... não. Meu corpo ficou gelado.

"Lucky, o que foi?" tentei chamá-lo, mas ele começou a rosnar, avançando para as sombras. "Não!" eu gritei, puxando a coleira, mas ele a quebrou e correu, latindo furiosamente. Eu o segui, mas era rápido demais para acompanhar, meu coração disparou quando ouvi aquele latido de agonia, como se sua vida tivesse sido arrancada, o pavor crescendo dentro de mim.

Quando o alcancei, ele estava parado, imóvel. De costas para mim, encarando o nada. "Lucky?" chamei, a voz trêmula. Ele virou-se lentamente e, quando vi seus olhos... Eu sabia. Eles brilhavam. Aquele brilho frio e sobrenatural que só poderia significar uma coisa.

"A morte não é o fim, é o portal."

A frase ecoou na minha mente, como um zumbido constante. Eu recuei, o medo me esmagando. Esse não era mais o meu cachorro. Lucky estava... morto, ou pelo menos a alma que o habitava se fora. O corpo dele era apenas uma marionete, movida por algo sombrio.

Eu corri, sentindo que algo estava me perseguindo. O ar ao meu redor parecia mais pesado, como se o próprio ambiente estivesse me cercando. O caminho até minha casa nunca pareceu tão longo. O chão parecia mais difícil de atravessar, meus pés pareciam afundar. A cada passo, eu ouvia a frase repetida, como se ela estivesse sendo sussurrada diretamente nos meus ouvidos.


Naquele dia, eu senti que algo estava errado assim que coloquei os pés em casa. O ar estava pesado. A casa, geralmente acolhedora, parecia estranha, hostil. Caminhei em direção à cozinha, onde minha mãe deveria estar. Eu podia ouvir o som suave de uma faca cortando, o ruído constante de um dia normal.


Ela estava ali, mas havia algo... torto. Sua postura rígida, a maneira como seus ombros estavam levantados demais, tensos, e a cabeça inclinada num ângulo estranho, desconfortável. Eu a chamei, hesitante, tentando afastar o nó que apertava meu estômago.

"Mãe?"

Ela não respondeu. A faca subia e descia, о som repetitivo e hipnotizante. Tentei de novo.

"Mãe?"

Seus movimentos pararam de repente. Silêncio. O único som que permanecia era minha própria respiração, agora acelerada. Ela virou lentamente, e foi nesse momento que o pavor se instalou.


Seus olhos. Aqueles olhos... brilhavam. Era um brilho frio, gélido, que congelava até os ossos. Naquele momento, algo se quebrou dentro de mim. Eu soube que algo inumano estava em minha frente, algo que não era mais a minha mãe.

Ela começou a andar em minha direção, lentamente, seus pés quase arrastando pelo chão. E, então, eu a vi. A fada. Não, não é bem assim... Ela estava dentro da minha mãe. Ou sobreposta a ela, como se ocupassem o mesmo espaço. Era como ver duas realidades coexistindo no mesmo ponto, uma distorcida pela outra. Minha mãe ainda estava ali, mas também não estava. Seus movimentos não eram naturais, como se estivesse sendo manipulada por algo maior, algo maligno.

E a fada...

Ela não era como as histórias infantis sugerem. Não tinha beleza etérea, nem aura de luz. Suas asas eram longas, deformadas, cobertas por uma pele translúcida que se movia em espasmos grotescos. Seus olhos, ou a ausência deles, eram apenas cavidades escuras, mas eu sabia que ela me enxergava, como se pudesse ver através de mim, diretamente em minha alma.

A boca da fada se abriu lentamente, os lábios rachados revelando dentes finos e afiados que pareciam vibrar de expectativa. E então, as palavras que eu temia ouvir ressoaram, sussurradas em uma voz que parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo:

"A morte não é o fim, é o portal."

Minha mãe deu mais um passo em minha direção, a mão estendida como se quisesse me tocar. Minha mente gritava para eu correr, mas meu corpo estava enraizado no lugar. Algo nela estava me prendendo, uma força invisível e esmagadora que me mantinha imóvel, como se estivesse debaixo de uma onda gigante. E então, num movimento rápido demais para que eu pudesse evitar, sua mão agarrou meu braço.

Suas unhas, que antes eram curtas e bem cuidadas, agora estavam longas, retorcidas como garras, pontiagudas e amarelas. Elas se cravaram na minha pele, perfurando-a como lâminas afiadas. A dor foi imediata, cortante, e eu soltei um grito sufocado, sentindo o sangue escorrer pelas marcas profundas.

"Por favor, mãe... para...", sussurrei, sentindo a fraqueza se espalhar pelo meu corpo, mas ela não me ouvia. Ou talvez nem pudesse mais me ouvir. A faca que ela segurava agora estava a poucos centímetros do meu rosto, tremendo em sua mão, e seus olhos brilhavam mais intensamente.

Então, com uma força que eu não sabia que possuía, puxei meu braço, conseguindo me soltar do aperto dela. O corte ardia, o sangue escorria livremente, mas eu não podia pensar na dor agora. Eu precisava correr. Sem olhar para trás, saí correndo da cozinha, atravessando o corredor, subindo as escadas em um desespero silencioso.


Corri, desesperada até o quarto da minha avó, pelas escadas, o som dos passos lentos da minha mãe, ou da fada, ecoando atrás de mim. 

O coração quase explodindo no peito. Precisava encontrar respostas, entender o que estava acontecendo. Mas quando cheguei lá, a cena me fez querer vomitar. Minha avó estava deitada na cama, o corpo frio e inerte. Mas o pior foi o que estava escrito com sangue nas paredes ao redor dela, em uma escrita irregular e desesperada:

"A morte não é o fim..."

Ela sabia. Ela sempre soube. E agora, eu também sabia. A morte não era um alívio. Era apenas o começo de algo muito maior, era o início de um novo mundo, onde as fadas dominavam, se alimentando de nossas almas.

Eu desabei no chão, sentindo o peso de uma verdade que não poderia mais ser ignorada. Elas estavam aqui, entre nós, tomando tudo o que restava de humano, e não havia como escapar.


Enquanto olhava meu reflexo no espelho, algo no meu próprio rosto me fez ter a certeza de que não haveria mais salvação para esse mundo. Meus olhos, agora estavam diferentes. Eles... brilhavam.

Um pavor primitivo tomou conta de mim enquanto a frase da fada ecoava pela minha mente, repetida como um mantra, cada vez mais alto, mais claro.
Logo elas virão até mim, é questão de tempo agora, posso sentir algo se aproximando.

Algo dentro de mim está mudando...

  "A morte não é o fim, é o portal."


quarta-feira, 24 de julho de 2024

O sacrifício do manto vermelho

Eu tinha doze anos quando fui escolhida para fazer aquilo. Cresci em uma cidadezinha interiorana que se mantém através da agricultura. Desde pequena, ouvia histórias sobre a floresta e a Coisa que habitava lá, mas para mim era o tipo de história inventada para assustar as crianças. Um dia, acidentalmente, ouvi uma conversa entre alguns moradores mais velhos e meus pais sobre o tal Pacto do Manto Vermelho. Eles diziam que o ritual deveria ser realizado para manter a prosperidade e proteger contra a criatura na floresta, que já haviam se passado 12 anos. 

"Alguém deve levar a oferenda este ano. É a última vez, após isso estaremos livres do pacto", disse um deles. 

"Sim, e precisa ser ela..." respondeu outro.

Eu estava escondida atrás da porta, ouvindo cada palavra, quando fui percebida. Eles me olharam com olhos severos. Antes que pudesse me explicar, minha mãe com lágrimas nos olhos disse: "Filha, me desculpa, mas precisa ser você. Vai ficar tudo bem, siga as regras, por favor, e tudo ficará bem". Ela disse que também fez isso quando tinha a minha idade, tentou acalmar dizendo que seria rápido e que tudo daria certo e seríamos mais felizes depois disso. 

Meus pais me deram uma série de regras para a minha segurança. Minha mãe colocou um manto vermelho em minhas mãos trêmulas, ouvi atentamente:

   •Regra número um: Você verá uma trilha marcada por restos de velas, nela você poderá encontrar pequenos animais mortos e alimentos, mas não toque em nada, mesmo que seja sua comida favorita. Se você se perder da trilha ou comer algo nela, você se torna a oferenda.

   •Regra número dois: Durante o trajeto, não fale, não chore e não faça barulho. A criatura estará sempre atenta a qualquer sinal. O manto vermelho irá confundir ela, então não retire em momento algum.

   •Regra número três: Não olhe nos olhos dela. Ela irá tentar atrair sua atenção para ela, não importa com o que ela se pareça, lembre-se que não é real.

   •Regra número quatro: Não abra o cesto em hipótese alguma. O conteúdo deve permanecer intocado. Se tocar na oferenda, você se tornará a oferenda.

Com essas regras gravadas na mente, fui levada até a entrada da floresta. O sol se pondo lançava sombras longas e assustadoras enquanto eu dava o primeiro passo. Os restos de velas e alimentos guiaram meu caminho, a sensação de ser observada era insuportável, mas não se comparava com desconforto de sentir o cheiro podre que vinha do cesto.

Enquanto caminhava, ouvi sussurros nas árvores e vi sombras se movendo rapidamente. O medo me fez correr, e comecei a ouvir passos atrás de mim, na verdade, o som parecia vir de todas as direções. Algo estava se aproximando. O medo crescia a cada segundo, me recusei a olhar para trás. De repente, uma voz familiar quebrou o silêncio.

"Querida, venha cá," a voz da minha avó chamou de uma cabana a qual eu não havia notado a existência. Sem nem pensar duas vezes, eu entrei. 


A cabana tinha o familiar cheiro de chá de ervas que ela fazia, mas minha avó havia morrido quando eu tinha seis anos. Em minha frente, sentada em uma cadeira de balanço, estava algo que falava como ela, mas que falhou miseravelmente ao tentar se parecer com ela. Na verdade, eu diria que aquilo falhou ao tentar se parecer com uma figura humana. Seus olhos eram grandes, orelhas pontiagudas, e quando ela falou, pude ver que tinha presas.

Tentei evitar fazer contato visual e segurei as lágrimas. Me aproximei para entregar o cesto de oferenda, mas tropecei, o cesto caiu no chão. O conteúdo se espalhou e vi, horrorizada, que estava carregando tripas, coração e pedaços de pele humana. Logo associei com as histórias de desaparecimentos de pessoas na região.

A criatura, já não se importava tanto em falar como minha avó, algo dentro daquele disfarce estava sedento, lutando contra sua fome. A voz falhava, e aos poucos, ia perdendo o que tinha de humana, assemelhando-se a algo grotesco, como um animal feroz tentando formar palavras. "Deixe o cesto de doces no meu colo," ela ordenou, "A vovó está frágil e não pode se abaixar." Era nítido que aquilo era uma armadilha para me pegar.

Cometi o erro de olhar para o rosto dela após ela salivar em minha mão. A visão era aterrorizante: sua boca se abriu em um sorriso deformado, revelando fileiras de dentes afiados, sangue escorria de seus olhos e as orelhas estavam se contorcendo, a criatura já não estava mais conseguindo sustentar aquele disfarce humano. Era um pesadelo vivo.

Ela se jogou no chão e começou a comer, seu corpo crescia aos poucos, pelos surgiam enquanto sua pele se rasgava, suas mãos agora eram longas garras. Apavorada, eu corri o mais rápido que pude, sabendo o que aconteceria se ainda estivesse ali depois que ela terminasse de comer a oferenda. Fugi sem olhar para trás, guiada pelo puro instinto de sobrevivência.


Não consegui continuar morando naquele lugar. De alguma forma minha família acabou ganhando muito dinheiro com as colheitas naquele ano, e assim me mudei para longe na casa de minha tia, com o pretexto de que seria melhor para os estudos. Agora adulta, venho visitar minha família durante as férias. Esse lugar ainda me traz desconforto. Hoje, estou na casa da minha irmã, celebrando o aniversário de 12 anos da minha sobrinha, Maria. Meus sobrinhos saíram para brincar, mas ainda não voltaram, não param de falar sobre uma casa feita de doces que existe na floresta. Está quase entardecendo...acho melhor ir chamar por João e Maria.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Reflexo na escuridão

Olá, meu nome é Megan. O que irei relatar é uma série de acontecimentos que mudaram minha vida, destruindo totalmente minha infância


Eu fui criada em um rancho isolado, onde a paz da natureza era interrompida apenas pelo sussurro do vento e o rugido distante dos animais. Meu pai, decidido a me proteger do caos urbano, optou por essa vida tranquila entre campos verdejantes e céus estrelados. Porém, nem tudo era serenidade.


Desde a infância, ajudei nas tarefas diárias: regar a horta com minha avó e alimentar os animais com meu avô. Os porcos me causavam arrepios, mas eu os observava à distância, cautelosa. O rancho era um paraíso, com árvores frutíferas e um riacho sereno, onde uma ponte de madeira servia de observatório para as águas em movimento.


Mas havia mistérios, sombras escondidas sob a beleza aparente. Meus avós mantinham costumes estranhos: cobriam os espelhos ao anoitecer e proibiam-me de brincar fora de casa após o pôr do sol. Na época, pareciam meras excentricidades, ao meu ver era o tipo de coisa que os adultos faziam para irritar as crianças. Até que as regras foram ditadas:


- Nunca descubra os espelhos à noite. Se acidentalmente descobrir, em hipótese alguma encare seu reflexo.


- Ao deitar-se, mesmo que esteja sem sono, finja estar dormindo. Não importa o que aconteça, não abra os olhos. Há coisas na escuridão que não querem ser vistas


- Não aceite os convites das crianças para brincar do lado de fora. Lembre-se, Megan, nós não temos vizinhos.


- Se esquecer algo do outro lado do riacho, deixe-o lá. O que quer que seja, não lhe pertence mais e não estará lá quando voltar.


- Não responda quando chamarem seu nome, mesmo que pareça familiar.


Eram regras confusas para uma criança, nada parecia fazer sentido. Quando eu tinha sete anos, um pesadelo despertou-me em desespero, assustada chamei pelo meu pai, mas o silêncio da noite foi minha única resposta. Comecei chorar. 

Lembrei da paz que sentia ao olhar para as vacas,  então abri as cortinas e as olhei pela janela, elas estavam todas voltadas para a casa, senti como se olhassem diretamente para mim. Seus olhos brilhavam refletindo a luz da lua de forma perturbadora. Era como estar em transe, mas algo me despertou ...


"Megan?"


Uma voz


"Megan!!" 


Um chamado


Mas dessa vez em tom de choro. Relutante, segui-a até o banheiro, de onde parecia emanar, mas não havia ninguém lá. Um frio gélido percorreu minha espinha quando percebi que a voz estava vindo do espelho, eu podia ouvir uma respiração ofegante. 


Lentamente me aproximei 


"MEGAN!"


A voz gritou 


Em meio ao desespero, puxei o pano que cobra o espelho, um amargo erro... Vi pelo reflexo uma mulher correr em direção à porta. Ouvi o som de seus passos pela casa antes que a porta se fechasse com estrondo. Em seguida ouvi gritos lá fora.



Comecei chorar. A porta se abriu, era meu pai. Me abraçou dizendo que tudo ficaria bem


Ele havia sido forte durante todos esses anos seguindo as regras. Mas ele não foi forte quando minha mãe morta começou a gritar aterrorizadamente lá fora...


Ele abriu a porta...


Ele saiu...


Ouvi seus gritos indiscerníveis se unirem.


Aquela foi a última vez em que vi meu pai 


Meu vô disse que ele foi vítima das crianças do escuro. Tentei culpar meus avós, mas sabia que a culpa não era deles... Ninguém podia fazer nada. 


Hoje eu temo a noite, e temo o luar, porque sei dos horrores que a lua traz consigo.