quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Fingindo ser ela

Os pais da Helena nunca a deixavam sozinha. Nunca. Eram o tipo de gente que ligava a cada meia hora quando ela saía com as amigas, e se eu demorasse dez minutos além do previsto para deixá-la em casa, o telefone tocava como se fosse uma emergência. Então, quando ela me disse que eles tinham viajado e que ficaria sozinha por alguns dias, algo em mim travou. Ela já havia me falado sobre a viagem, mas nunca pensei na possibilidade de ficar sozinho com ela em sua casa.

"Vem me fazer companhia"

ela disse pelo celular, e a voz parecia a mesma. Doce, casual. Mas não soava como Helena. Não inteiramente... No primeiro dia, achei que era impressão minha. Talvez cansaço. Mas havia detalhes… pequenas coisas que me cutucavam como espinhos invisíveis. Ela sorria diferente. Os cantos da boca subiam rápido demais, como se o rosto não tivesse sido feito para aquele gesto. Às vezes a voz oscilava, mais grave, um timbre que nunca ouvi nela. E o pior era quando me chamava de "amor". Não havia carinho na palavra, só uma repetição mecânica, como quem está praticando a falar algo pela primeira vez. No começo pensei que era frieza, que ela não me amava mais. Essa ideia me corroía. 

Mas a cada hora que passava, a explicação de que era apenas "desamor" parecia mais frágil. A gata dela, a Mimi, sempre foi grudada em Helena. Dormia no colo, ronronava só de ouvir a voz dela. Agora, quando Helena entrava no quarto, Mimi se arrepiava inteira, recuava para baixo da cama e soltava aquele miado baixo, aflito. 

Helena fingia não notar, apenas forçava aquele sorriso errado. Eu comecei a fingir também. Fingir que acreditava. Ria das piadas dela, abraçava quando me pedia, deixava os lábios encostarem nos dela mesmo sabendo que o beijo não era igual, tinha um gosto estranho, metálico. Por dentro, eu só observava. Testava. Guardava os erros dela. 

No terceiro dia, a máscara quase caiu. Perguntei sobre nossa primeira viagem juntos, para a praia. Ela respondeu com convicção, mas trocou o nome da cidade. Helena nunca erraria isso. Nunca. Quando a corrigi, ela piscou rápido e riu, tentando disfarçar. Mas eu vi nos olhos: não era esquecimento. Era improviso. 

Naquela noite, não aguentei mais. Sentei no sofá, com Mimi escondida atrás de mim, e encarei aquela coisa que usava o rosto da minha namorada. 

 "Quem é você?"
minha voz tremia. 

 "O que você fez com a Helena?" 

Ela congelou. O sorriso se desfez. Por alguns segundos, o silêncio foi absoluto, pesado, como se a casa prendesse a respiração. Então ela inclinou a cabeça e falou, e a voz… a voz não era dela. Era grossa, irregular, como se ecoasse de dentro de um poço. 

"Você percebeu… não é?" 
 Ela sorriu, mas o rosto se retorceu. 

 "Você sabe que eu não sou ela." 

 A pele começou a ceder, descascando. O pescoço se alongou de repente, os olhos escorreram em uma forma de líquido. O corpo inteiro se retorcia, ossos estalando. A boca se abriu larga demais, os dentes irregulares, podres, surgindo num arco deformado.

Eu gritei. Ela avançou sobre mim, a forma de Helena despencando em pedaços. Um ser apodrecido, humanoide, deformado, fedia como carne deixada ao sol. Avançou com um estalo seco, braços compridos, dedos afiados. Eu corri, tropeçando pela casa, Mimi disparando junto.

Atrás de mim, o som dela... ossos quebrando, carne se arrastando, como se o corpo lutasse para se mover, aquilo estava tentando assumir uma nova forma, não esperei para ver. Consegui escapar. Bati a porta atrás de mim e corri até minhas pernas perderem as forças. 

Quando me virei, a rua estava vazia. Helena não estava mais lá. A coisa sumiu. No dia seguinte, não tive notícias dela. Nem mensagens, nem ligações.

Até que, na televisão, vi a notícia: um carro encontrado na ribanceira, destruído. Dentro dele, os pais da Helena... E Helena. Todos mortos no acidente. O mundo girou. A garganta secou. Ela estava morta desde o início. Morta. Então o que, em nome de Deus, esteve comigo todos aqueles dias? Desde então, não consigo dormir em paz. Cada ruído no escuro me faz gelar, cada sombra parece observadora. 

Porque eu sei que ela... não, aquilo, ainda está por aí. Em algum lugar, existe algo fingindo ser alguém.