sexta-feira, 18 de outubro de 2024

As fadas

Minha avó costumava dizer que o medo verdadeiro não vinha de criaturas grotescas que saltam das sombras. O medo verdadeiro era sutil, paciente. Ele sussurra para você, criando raízes no coração até que, quando você se dá conta, ele já tomou conta de tudo. É nesse momento que você percebe que não há escapatória.

Quando eu era pequena, ela me contava histórias sobre fadas, mas não aquelas criaturas fofas que apareciam em livros infantis. Não, as fadas da minha avó eram predadoras, seres antigos e impiedosos que viviam entre nós, escondidos à vista de todos. Elas não eram reconhecíveis à primeira vista. "Você só as verá quando for tarde demais," dizia minha avó. "É o brilho nos olhos... um brilho que não pertence a este mundo. E quando você ver isso acontecer, vai entender...A morte não é o fim, é o portal."


Naquela época, essas palavras me assustavam, mas eram apenas histórias, ou pelo menos foi o que eu escolhi acreditar. No entanto, com o passar dos anos, essas histórias começaram a tomar vida própria. Pequenas coisas começaram a acontecer. Animais desapareciam, o ar parecia mais pesado, e as noites pareciam ter se tornado mais longas. Mas eu continuei ignorando os sinais.

Até que os corpos começaram a aparecer.

As notícias explodiram em todos os lugares. Pessoas ao redor do mundo, de diferentes países, começavam a ser encontradas mortas em circunstâncias estranhas. Não havia sinais de violência física. O que deixava tudo mais perturbador eram os olhos das vítimas. Todos os relatos, de diferentes partes do planeta, concordavam com a mesma descrição: olhos que brilham.

Os noticiários não sabiam como explicar. Teorias de um vírus, um surto psicótico coletivo ou até mesmo uma contaminação química começaram a circular. Manchetes gritavam o terror em letras vermelhas, como se o mundo estivesse sendo invadido por algo invisível, algo que ninguém conseguia nomear.

"Olhos brilhantes, mortes inexplicáveis se espalham pelo mundo" "Contaminação Global? Cientistas em pânico sobre os recentes eventos"

Mas eu sabia. As palavras da minha avó ressoavam mais fortes do que nunca: "A morte não é o fim, é o portal."

Foi numa tarde ensolarada que algo mudou para sempre. Eu estava passeando com Lucky, meu cachorro, como fazia todos os dias, quando ele parou subitamente, o pelo se arrepiou, as orelhas em pé. Seus olhos fixos em um ponto à frente, em um beco escuro. Segui seu olhar e, por uma fração de segundo, vi. Dois olhos brilhando na escuridão. Humanos, mas ao mesmo tempo... não. Meu corpo ficou gelado.

"Lucky, o que foi?" tentei chamá-lo, mas ele começou a rosnar, avançando para as sombras. "Não!" eu gritei, puxando a coleira, mas ele a quebrou e correu, latindo furiosamente. Eu o segui, mas era rápido demais para acompanhar, meu coração disparou quando ouvi aquele latido de agonia, como se sua vida tivesse sido arrancada, o pavor crescendo dentro de mim.

Quando o alcancei, ele estava parado, imóvel. De costas para mim, encarando o nada. "Lucky?" chamei, a voz trêmula. Ele virou-se lentamente e, quando vi seus olhos... Eu sabia. Eles brilhavam. Aquele brilho frio e sobrenatural que só poderia significar uma coisa.

"A morte não é o fim, é o portal."

A frase ecoou na minha mente, como um zumbido constante. Eu recuei, o medo me esmagando. Esse não era mais o meu cachorro. Lucky estava... morto, ou pelo menos a alma que o habitava se fora. O corpo dele era apenas uma marionete, movida por algo sombrio.

Eu corri, sentindo que algo estava me perseguindo. O ar ao meu redor parecia mais pesado, como se o próprio ambiente estivesse me cercando. O caminho até minha casa nunca pareceu tão longo. O chão parecia mais difícil de atravessar, meus pés pareciam afundar. A cada passo, eu ouvia a frase repetida, como se ela estivesse sendo sussurrada diretamente nos meus ouvidos.


Naquele dia, eu senti que algo estava errado assim que coloquei os pés em casa. O ar estava pesado. A casa, geralmente acolhedora, parecia estranha, hostil. Caminhei em direção à cozinha, onde minha mãe deveria estar. Eu podia ouvir o som suave de uma faca cortando, o ruído constante de um dia normal.


Ela estava ali, mas havia algo... torto. Sua postura rígida, a maneira como seus ombros estavam levantados demais, tensos, e a cabeça inclinada num ângulo estranho, desconfortável. Eu a chamei, hesitante, tentando afastar o nó que apertava meu estômago.

"Mãe?"

Ela não respondeu. A faca subia e descia, о som repetitivo e hipnotizante. Tentei de novo.

"Mãe?"

Seus movimentos pararam de repente. Silêncio. O único som que permanecia era minha própria respiração, agora acelerada. Ela virou lentamente, e foi nesse momento que o pavor se instalou.


Seus olhos. Aqueles olhos... brilhavam. Era um brilho frio, gélido, que congelava até os ossos. Naquele momento, algo se quebrou dentro de mim. Eu soube que algo inumano estava em minha frente, algo que não era mais a minha mãe.

Ela começou a andar em minha direção, lentamente, seus pés quase arrastando pelo chão. E, então, eu a vi. A fada. Não, não é bem assim... Ela estava dentro da minha mãe. Ou sobreposta a ela, como se ocupassem o mesmo espaço. Era como ver duas realidades coexistindo no mesmo ponto, uma distorcida pela outra. Minha mãe ainda estava ali, mas também não estava. Seus movimentos não eram naturais, como se estivesse sendo manipulada por algo maior, algo maligno.

E a fada...

Ela não era como as histórias infantis sugerem. Não tinha beleza etérea, nem aura de luz. Suas asas eram longas, deformadas, cobertas por uma pele translúcida que se movia em espasmos grotescos. Seus olhos, ou a ausência deles, eram apenas cavidades escuras, mas eu sabia que ela me enxergava, como se pudesse ver através de mim, diretamente em minha alma.

A boca da fada se abriu lentamente, os lábios rachados revelando dentes finos e afiados que pareciam vibrar de expectativa. E então, as palavras que eu temia ouvir ressoaram, sussurradas em uma voz que parecia vir de todos os lugares ao mesmo tempo:

"A morte não é o fim, é o portal."

Minha mãe deu mais um passo em minha direção, a mão estendida como se quisesse me tocar. Minha mente gritava para eu correr, mas meu corpo estava enraizado no lugar. Algo nela estava me prendendo, uma força invisível e esmagadora que me mantinha imóvel, como se estivesse debaixo de uma onda gigante. E então, num movimento rápido demais para que eu pudesse evitar, sua mão agarrou meu braço.

Suas unhas, que antes eram curtas e bem cuidadas, agora estavam longas, retorcidas como garras, pontiagudas e amarelas. Elas se cravaram na minha pele, perfurando-a como lâminas afiadas. A dor foi imediata, cortante, e eu soltei um grito sufocado, sentindo o sangue escorrer pelas marcas profundas.

"Por favor, mãe... para...", sussurrei, sentindo a fraqueza se espalhar pelo meu corpo, mas ela não me ouvia. Ou talvez nem pudesse mais me ouvir. A faca que ela segurava agora estava a poucos centímetros do meu rosto, tremendo em sua mão, e seus olhos brilhavam mais intensamente.

Então, com uma força que eu não sabia que possuía, puxei meu braço, conseguindo me soltar do aperto dela. O corte ardia, o sangue escorria livremente, mas eu não podia pensar na dor agora. Eu precisava correr. Sem olhar para trás, saí correndo da cozinha, atravessando o corredor, subindo as escadas em um desespero silencioso.


Corri, desesperada até o quarto da minha avó, pelas escadas, o som dos passos lentos da minha mãe, ou da fada, ecoando atrás de mim. 

O coração quase explodindo no peito. Precisava encontrar respostas, entender o que estava acontecendo. Mas quando cheguei lá, a cena me fez querer vomitar. Minha avó estava deitada na cama, o corpo frio e inerte. Mas o pior foi o que estava escrito com sangue nas paredes ao redor dela, em uma escrita irregular e desesperada:

"A morte não é o fim..."

Ela sabia. Ela sempre soube. E agora, eu também sabia. A morte não era um alívio. Era apenas o começo de algo muito maior, era o início de um novo mundo, onde as fadas dominavam, se alimentando de nossas almas.

Eu desabei no chão, sentindo o peso de uma verdade que não poderia mais ser ignorada. Elas estavam aqui, entre nós, tomando tudo o que restava de humano, e não havia como escapar.


Enquanto olhava meu reflexo no espelho, algo no meu próprio rosto me fez ter a certeza de que não haveria mais salvação para esse mundo. Meus olhos, agora estavam diferentes. Eles... brilhavam.

Um pavor primitivo tomou conta de mim enquanto a frase da fada ecoava pela minha mente, repetida como um mantra, cada vez mais alto, mais claro.
Logo elas virão até mim, é questão de tempo agora, posso sentir algo se aproximando.

Algo dentro de mim está mudando...

  "A morte não é o fim, é o portal."


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